domingo, 27 de dezembro de 2009

Perdoando Deus

Perdoando Deus

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.

Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.

E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.

Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.

Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar – não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele – mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.

… mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.

Clarice Lispector em Felicidade Clandestina

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

rabiscos sobre o amor

É acho que o amor existe.
Mas ele é bem mais simples do que imaginei.


É essa coisa estranha, que não me rouba de mim.
Eu tinha medo.
Eu pensava que o amor me roubaria de mim. Mas não.

O amor é bonito. É uma largatixa listrada.
É liberdade, confiança, respeito.

Eu pensava que o amor tinha que ser intenso, dolorido, louco.
Talvez sim.
Mas não o nosso amor.

Será amor?

sobre arrufos

Não quero um amor de plástico.
Quero um amor que envelheça, acabe, apodreça,
mas que tenha vida.

Amor que as palavras não dêem conta,
que me embarasse, rasgue o nexo,
imponha nova configuração
ao meu parco entendimento do mundo,
de mim.

Amor de traça ao comer o papel-palavra.
Amor pelos orifícios, artifícios.

Tudo é decoração?

É pelo amor que não me enterro dentro de mim,
depois do durante de tanta dor, neste vale de lágrimas.

Semeio a planta que dá a vida,
cultivo,
até que ela cria vida própria,
e vai crescer noutro jardim.

sobre lagartas

Medo da vida.

Dessa intensidade que sinto do dentro.
Medo da potência, dos limites.

Busco o controle.
O controle disso que me escapa,
do que me excede.

Sei que nada controlo.
Mas se não há o virtual controle, o improvável entendimento,
temo sucumbir.

Sim, morrer.
Pois a intensidade desse tudo que vejo, sinto, ouço, penso,
é grande demais.

A lagarta que tem medo de altura nunca vira borboleta.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Ocaso

Que buraco é esse? Insaciável. De mim mesma e do outro que devoro vorazmente.
Eu sou assim.
O reverso da alegria é a tristeza, que me habita e não me deixa esquecer das dores do mundo, das dores de mim.

E logo menos o sol se vai. E junto com ele qualquer certeza.
Mas amanhã ele volta. - espero que ele volte-. Só para me ajudar a aquecer, dissipar entre seus raios essa coisa, esse eu que neste agora abrigo.

O sol brilha para mim.
E quando me vê,
sorri.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Amaranta esmiuçada

"É que toda vez
que durmo
com alguém que não amo
eu não amanheço" Renato limão

Um buraco se abre.
Tudo cai dentro.
E o que me fica?
Deste presente desgastado?
Desgostado.
O que me é? O que me sou?
Não é sono.
Não há ninguém para que eu divida o meu vazio.
Eu, em mais uma cama alheia. Em mais um universo alheio.
Amaranta esmiuçada.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Quando danço...

O movimento do corpo é um impulso do espírito que quer transgredir os limites impostos pela matéria. Quando danço sou cada instrumento que ouço, cada cheiro, cada textura que sinto. Janelas-olhos se espalham pelos meus poros. Vejo através da pele, da coluna, da sola do pé. Cada célula do meu corpo se coloca em estado de atenção, sem tensão. A presença no seu estado mais puro. A integração do que foi esquartejado. A comunicação. A mais delicada instabilidade numa expressão da ansiedade de ser.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Hoje

Hoje acordei irritada.
Com o ventre rachado.

Sem conseguir da vazão,
para o tal do rio-ação.

De que serve esse sol, que beija meu rosto
mas não me diz nada?

Represada, de saco cheio
e sem saber para onde ir.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Ha-ha-ha

"Sigam-me os bons!" - Chico Xavier
"Falar é fácil, fazer é difícil" - Alejadinho

Ofuscamento

êita que faz tempo que num apareço por aqui,
que não me grudo, me estatelo, nua, nesta tela em branco.

Mas ontem eu tava sofrendo dessas imaginação.
Imaginá que um sentimento tão puro e supremo tenha possibilidade de realização por essas bandas, é bobagem.

E eu, pra variá, fui boba dimais.
E que sentimento é em relação à essa minha gente, minha tão imperfeita gente?
É compaixão, das mais delicadas e pungentes.

No terreiro

E o passarinho, agora, morreu
Tentou-se remediar
Mas do sopro de seu canto, do fresco sopro do seu canto,
restou somente a essência.
A faísca da lembrança
A menina ficou triste


Outros virão cantar em seu terreiro?
Com os pés descalços ela observa
E sente a palpitação que é participar do mistério da vida.

do sonho

Sonhei que pisava em cacos de vidro.
Talvez eu estivesse indo em direção ao "Tadasu-No-Mori", aquele bosque onde as mentiras se revelam. Tentei resistir.
Mas já não havia voltas.

Objeto semi-identificado

-Diga lá.
- Digo eu.
- Diga você.

-E línguas como que de fogo tornaram-se invisíveis. E se distribuíram e sobre cada um deles assentou-se uma. E todos eles ficaram cheios de espírito santo e principiaram a falar em línguas diferentes.

- Eu gosto mesmo é de comer com coentro. Uma moqueca, uma salada, cultura, feijoada, lucidez, loucura. Eu gosto mesmo é de ficar por dentro, como eu estive na barriga de Claudina, uma velha baiana cem por cento.
- Tudo é número. O amor é o conhecimento do número e nada é infinito. Ou seja: será que ele cabe aqui no espaço beijo da fome? Não. Ele é o que existe, mais o que falta.
- O invasor me contou todos os lances de todos os lugares onde andou. Com um sorriso nos lábios ele disse: "A eternidade é a mulher do homem. Portanto, a eternidade é seu amor".Compre, olhe, vire, mexa. Talvez no embrulho você ache o que precisa. Pare, ouça, ande, veja. Não custa nada. Só lhe custa a vida.
- Entre a palavra e o ato, desce a sombra. O objeto identificado, o encoberto, o disco-voador, a semente astral.- A cultura, a civilização só me interessam enquanto sirvam de alimento, enquanto sarro, prato suculento, dica, pala, informação.
- A loucura, os óculos, a pasta de dentes, a diferença entre o 3 e o 7. Eu crio.A morte, o casamento do feitiço com o feiticeiro. A morte é a única liberdade, a única herança deixada pelo Deus desconhecido, o encoberto, o objeto semi-identificado, o desobjeto, o Deus-objeto.
- O número 8 é o infinito, o infinito em pé, o infinito vivo, como a minha consciência agora.
- Cada diferença abolida pelo sangue que escorre das folhas da árvore da morte. Eu sou quem descria o mundo a cada nova descoberta. Ou apenas este espetáculo é mais um capítulo da novela "Deus e o Diabo etc. etc. etc."
- O número 8 dividido é o infinito pela metade. O meu objetivo agora é o meu infinito. Ou seja: a metade do infinito, da qual metade sou eu, e outra metade é o além de mim.

Gilberto Gil

Cisco

Os sentimentos permanecem
Recusam etiquetas, tentativas de apuração de seu peso,
consistência e dimensão.
Não se encaixam nos compartimentos oferecidos pelas palavras.
Prezam pela liberdade.
As palavras saem
sem criançamento de palavra

é isso,
e eu queria "crescer pra passarinho".

Salve o Rosa

"Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o sentir da gente; o que isso é falta de soberania, é farta bobice, e fato é."

"Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo: o julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga já é passado"

Riobaldo.

"Essa gente"

Ouvir gentetão comum, tão simples, tão próxima...tão gente...me suplementa.
Faz-me sentir humana numa realidade de máquinas. Faz-me olhar com os olhos da alma e vivenciar um encantamento que se esvai a cada segundo pelos ares desse mundão.
São histórias, estórias, causos. Constituintes do que são e do que vejo.
Subcamadas do ser, provas do existir, repousando nos recônditos de rostos banais.

da escrita

São curtos os meus escritos,
são bem curtos os meus escritos.
Mas como um suspiro nos dias agitados,
num único ímpeto de folêgo,
acomoda-se minha alma
nesta vestimenta apertada.

Beira mar

E eu, que não sei quase nada do mar,navego.
Me derramo inteiramente,
deixando de ser para ser.
Já não há limites.

"Agora que o corpo todo está molhado e dos cabelos escorrem água, agora o frio se transforma em frígido. Avançando, ela abre as águas do mundo pelo meio. Já não precisa de coragem, agora já é antiga no ritual retomado que abandonara há milênios. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira numa cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem.Brinca com a mão na água, pausada os cabelos ao sol quase mediatamente já estão endurecendo de sal. Com a concha das mãos e com a altivez dos que nunca darão explicação, nem a eles mesmo: com a concha das mãos cheias de água, bebe-a em goles grandes, bons para a saúde do corpo.E era isso o que estava lhe faltando, o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora ela está toda igual a si mesma (...).
Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois já conhece e já tem um ritmo de vida no mar. Ela é a amante que não teme pois sabe que terá tudo de novo"
C.Lispector